Autor: Daniel Meza

Os biotecnólogos estão insatisfeitos com a recente ampliação da moratória dos cultivos transgênicos até 2035. Embora alguns trabalhadores rurais usem OGM, estes não foram consultados. Enquanto isso, mensagens imprecisas obscurecem um diálogo sério sobre o tema

Para a família de Francisco Lalupu (73 anos), outubro significa o início da temporada da colheita de milho. Sob o sol escaldante da região mais equatorial do Peru, começa uma longa cadeia de produção de alimentos para as aves de curral, para o consumo humano, o comércio e a bebida preferida dos nossos ancestrais, a chicha de jora (bebida fermentada à base de milho maltado).

Mas o ano passado foi diferente: milhares de quilômetros ao sul, na capital, 104 congressistas votaram contra o cultivo de uma espécie de milho que o patriarca usa há anos. Os representantes garantem “defender os pequenos agricultores” e “proteger nossa biodiversidade”.

Ninguém perguntou nada a Francisco nem aos seus filhos

O debate público foi dominado por um grupo diversificado e poderoso: políticos, agremiações agrárias, ativistas e chefs. Com o lema “Peru, um país livre de transgênicos”, fortaleceram a posição parlamentar de prorrogar por mais 15 anos a Moratória - impedindo o cultivo de organismos geneticamente modificados (OGM).

Diálogo sem consensos

Uma amostra do que foi o diálogo nacional em torno dos transgênicos entre 2011 e 2021 ocorreu na Comissão Multissetorial de Consultoria (CMA, na sigla em espanhol).

Seu objetivo era acompanhar a implementação da lei, fortalecer as competências e assessorar o Estado sobre a biotecnologia moderna. Era formada por diferentes setores do país: ministérios, governos regionais, universidades, grêmios de agricultores, ONGs, entre outros.

Mas, segundo depoimentos dos detentores de posições técnicas daquele grupo, foi difícil avançar. Para Jorge Alcántara, representante do INIA e Alberto Tenorio, ex-responsável do Programa Nacional de Biotecnologia no Concytec, as organizações antitecnologia impediram o cumprimento do objetivo. Esperam que a comissão atual, fruto da nova moratória, convoque mais instituições científicas para alcançar a equidade.

Um transgênico ‘bom’ em Piura

Nas regiões de Bajo Piura e Sechura, os Lalupu e outras famílias cultivam o milho “pato”. À primeira vista não há nada de especial nisso, mas em 2019 o Ministério do Meio Ambiente (MINAM) descobriu nele a proteína Cry1A pertencente ao milho transgênico MON810, comercializado como YieldGard.

Relatórios oficiais informaram que, anos atrás, aquele milho comercial foi importado e semeado, agradando aos agricultores por ser resistente à temida praga da lagarta do cartucho. Assim, acabou cruzando com duas variedades locais de milho.

Tudo aconteceu sem que os agricultores soubessem da existência de OGM em suas lavouras.

Como os transgênicos chegaram à região?

Maiz transgénico

Até a década de 1980, apenas o milho da espécie “alazán” era usado no litoral norte peruano...


"Agora quase tudo é milho pato", disse Francisco a Historias Sin Fronteiras da sua casa em Monte Castillo, uma vila rural da região.

E tinha razão: embora os trabalhadores rurais só possam usar sementes certificadas, o MINAM relatou que em todas as regiões de Sechura e Bajo Piura eles preferem ‘pato’ por ser “menos suscetível às pragas, menos caro e mais resistente à falta d’água”.

Por que, conhecendo esses testemunhos, o Congresso estendeu a moratória até 2035? A quem representou nessa decisão?

Razões para uma moratória após a outra

Na América do Sul, o Brasil, a Argentina e a Colômbia usam culturas transgênicas e sua economia agrícola é altamente dependente delas. Do lado oposto está o Peru, onde são proibidas.

A briga começou em 2011. Na época, pouco se sabia do impacto dos OGM, por isso o Congresso decidiu pela primeira Lei da Moratória (29811) de uma década, apelando para o Protocolo de Cartagena, a fim de “evitar um dano irreparável à biodiversidade nacional”, entre outras razões.

Essa lei determinou que o Estado devia: (a) fortalecer as capacitações nacionais em relação aos OGM, (b) criar infraestrutura para a sua liberação e (c) gerar linhas de base sobre a biodiversidade em risco.

Mas “ainda temos uma grande lacuna de conhecimento”, disse a HSF o ex-congressista Jaime Delgado, que propôs a Primeira Moratória. Ele também acredita que “apostar nos OGM é arriscar nossa posição como exportador de orgânicos, mais do que dizer se (os OGM) são bons ou ruins”. O congressista Lenin Bazán, presidente da Comissão Parlamentar dos Povos Indígenas, adotou um posicionamento semelhante. Por isso, promoveu a nova Lei da Moratória (31111) “em coordenação com os pequenos agricultores por meio da Conveagro e de chefs renomados” e pediu também que “antes de pensar nos transgênicos revalorizemos nossos produtos orgânicos”.

Por sua vez, a Conveagro, um influente grupo de grêmios agrários que fez lobby pela lei, nos respondeu por meio da sua gerente geral, Giovanna Vásquez. Consultada sobre as razões científicas, ela admitiu que “somos um grêmio e só podemos dar um posicionamento político”.

Na gastronomia, o empresário e chef Virgilio Martínez protagonizou uma campanha viral nas redes sociais, alertando nas entrelinhas que “os OGM acabarão com a nossa biodiversidade” (), incentivando milhares a assinar uma petição em Change.org a favor da moratória. A curiosa estratégia não teria sido possível sem o Consórcio Agroecológico, um grupo de organizações de alimentos orgânicos, que, juntamente com publicitários, idealizou os anúncios.

HSF consultou Cecilia Mandiola, representante do consórcio, atrás de evidências dos prejuízos. Sem responder especificamente, Mandiola referiu-se à conquista midiática da campanha. “Os peruanos se identificam com a biodiversidade e graças aos vídeos conseguimos muitas adesões”. É verdade, o impacto nas redes foi indiscutível, e também sua falta de suporte técnico.

Não duvidamos das suas boas intenções, mas ... o fim justifica os meios?

Peru transgenicos 1

Diálogo sem consensos

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Frustração acadêmica

“(A Moratória) foi decepcionante, frustrante”, disse o microbiologista Jorge Alcántara, diretor de regulação do Instituto de Inovação Agrária (INIA).

Para ele, não se trata de ser a favor ou contra, mas de ter um posicionamento técnico. O Congresso não deu ouvidos às recomendações do INIA nem da Comissão Parlamentar de Ciência e Tecnologia, e "se amparou em subjetividades”.

Alcántara ficou impressionado com a campanha dos chefs anti-transgênicos. “Como biotecnólogo, não vou dizer a eles como fazer um arroz com pato”, ironizou.

Para a bioquímica Rosa Angélica Sánchez, professora na Universidade Nacional Agrária La Molina e ex-diretora de Genética e Biotecnologia do INIA, o problema é o desconhecimento. "Em países megadiversos como o Brasil ou as Filipinas que cultivam transgênicos, esta é a principal causa da perda da biodiversidade”.

De fato. Estudos recentes revelaram que tal perda nos três países ocorreu por causa do uso excessivo das terras e dos recursos, à mudança climática antropogênica e à expansão da atividade agrícola , e não dos transgênicos. Mesmo assim, estudos de monitoramento de mais de 15 anos de OGM não encontraram danos à biodiversidade .

“Qualquer contaminação, seja OGM ou tradicional, com o manejo adequado, pode ser controlada”, acrescentou Sánchez. Para ela, a transgenia poderia antes de mais nada ajudar a conservar a biodiversidade nas zonas alto-andinas, onde as batatas nativas desaparecem devido às pragas.

Sobre combater pragas, o biotecnólogo celular belga Marc Ghislain sabe muito bem como agir, pois durante anos trabalhou criando batatas transgênicas resistentes ao fungo (Phytophthora infestans) no Centro Internacional da Batata (CIP) em Lima. Hoje, da sua casa em Nairóbi (Quênia), Marc define a segunda moratória como “ridícula”.

“Proíbe-se algo que beneficia os agricultores e o meio ambiente”, lamentou.

Impedido de trabalhar com a primeira moratória, Marc mudou-se para a África, onde com sua equipe do CIP colabora com os governos. “Os políticos peruanos evitam o assunto porque lhes é inconveniente”, garantiu.

O biólogo Alberto Tenorio, que por um tempo fez parte de uma Comissão de consultoria ao Estado em matéria de OGM, reconheceu como era difícil trabalhar: “sempre vinham com os danos à biodiversidade”. Além disso, estudantes de OGM estão preferindo migrar para campos onde haja menos preconceito.

Sem representação dos trabalhadores rurais

Uma ferramenta biotecnológica foi sacrificada para o bem dos pequenos agricultores?

Em Monte Castillo, onde vivem os Lalupu, os problemas são suficientes para o Parlamento prestar atenção. O Estado, nessas terras, prima pela ausência.

Apesar da sua posição anti-OGM inabalável, a Conveagro reconheceu que não é a voz de todo o trabalhador rural nacional. “Só posso falar pelos grêmios que representamos”, admitiu Vásquez.

A presença dos transgênicos nas terras dos Lalupu se reflete nos vales rurais de Sechura e Bajo Piura, onde há mais abandono do que a presença do Estado. Falando com a HSF, Francisco reclamou que só os procuram para exigir o pagamento dos créditos, mas não recebem treinamento no setor agrícola.

Os trabalhadores rurais "recorrem ao milho transgênico porque não existe melhor opção", disse a HSF um agrônomo que trabalhou no governo regional em 2019, reconhecendo que, "para dezenas de milhares de propriedades, há apenas um ou dois engenheiros".

Um meio termo, a solução menos discutida

Existe uma opção além do branco e preto para um país tão grande? Os preconceitos são muitos e o assunto é complexo, por isso são necessários mais diálogos e evidências.

Diante da posição fervorosa de que os OGM geram dependência das grandes corporações, Ghislain discordou. “No Peru e na África buscamos liberar variedades de domínio público”.

“Há centenas de organizações nacionais e universidades que desenvolvem OGM sem patentes”, acrescentou Sánchez.

Para os especialistas consultados, o ideal teria sido permitir transgênicos para determinados cultivos, e não apenas proibi-los. Uma terceira via, também consideraram, ajudaria na soberania alimentar. Sem biotecnologia, nossas sementes não competem com as importadas.

Ao decidir pela Moratória, os Congressistas representam os agricultores? Ouvem nossos cientistas? Parece que não. Uma resposta honesta seria o primeiro passo para melhorar a forma como tomamos decisões. É isso ou continuar a nos privar de ferramentas genéticas que, se bem utilizadas, poderiam ser parte importante da solução.

Culturas de milho GM no Peru

Na região noroeste do Peru, na região costeira de Piura, estão localizadas as culturas de milho transgênicas estudadas pelo Ministério do Ambiente.

Fonte: Ministério do Meio Ambiente do Peru.